Projeto polêmico, em trâmite no Congresso e no Senado há 10 anos, determina um papel secundário aos profissionais de saúde, que perderiam sua autonomia

 De: Hoje Centro Sul- Texto: Edilson Kernicki - Imagem: Edilson Kernicki  -  Áudio: Sergio Popo 

Nem mesmo a ameaça de chuva impediu que algumas dezenas de estudantes do Setor de Ciências da Saúde do Campus da Unicentro em Irati realizassem uma manifestação contra o chamado Ato Médico, na tarde da última quarta (14). Estudantes e profissionais discordam de alguns pontos do Projeto de Lei 268/02 – o chamado Ato Médico, uma tentativa de regulamentação da Medicina no país. Segundo eles, a forma como o projeto se apresenta afeta a liberdade de atuação de outros profissionais da área da saúde, como psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, enfermeiros, fisioterapeutas, professores de educação física, entre outros. Além disso, alega-se que os médicos não teriam formação específica voltada para atender a demanda de todos os pacientes que buscam profissionais dessas áreas.

De acordo com a presidente do Centro Acadêmico de Psicologia da Unicentro, Talita Baldin, o Ato Médico fere um dos principais preceitos do SUS: a descentralização e a multidisciplinaridade, “pois fica tudo centralizado no médico. Depois de tanto tempo e tanto movimento social para instaurar de fato o SUS, perdemos essa multidisciplinaridade de uma hora para outra?”, questiona a estudante. Ela ressalta, no entanto, que os estudantes não são contrários à regulamentação da Medicina, apenas contra a forma como o projeto está escrito e diz que ele necessita ser revisto. Talita acredita que a conduta sobrecarregaria tanto o profissional quanto o sistema público de saúde. Ela sugere que grande parte dessa demanda que chegaria ao médico pode ser resolvida, por exemplo, na Clínica Escola, ou diretamente num psicólogo, sem depender da consulta ao médico. Por outro lado, o paciente também seria onerado, pois o atendimento com esse especialista dependeria de duas consultas, em vez de uma só. No SUS, a prática já está em vigor: o paciente é atendido pelo clínico geral, a princípio, que o encaminha ao especialista. Já os pacientes conveniados a planos de saúde teriam que pagar uma consulta a mais, o que Talita considera injusto e desnecessário.

De acordo com a presidente do CA, o movimento foi encabeçado e organizado pelos estudantes de Psicologia da Unicentro, com incentivo dos professores no sentido de lutar contra a medicalização da sociedade e do ensino. Uma vez que os alunos discordam de alguns pontos do polêmico PL, mobilizaram essa manifestação, repetindo o feito de 2010. Segundo Talita, a reivindicação não é recente, pois o projeto tramita há 10 anos no Legislativo.

Em Irati, a adesão ao protesto foi feita mediante contato boca a boca com estudantes de áreas afins. Os estudantes também organizaram um grupo no Facebook, no intuito de se articular com alunos de outras instituições de ensino, que também realizaram suas manifestações paralelas. Em Guarapuava, por exemplo, estudantes de Nutrição e Fisioterapia também realizaram protesto. Em Ponta Grossa, alunos do curso de Medicina da UEPG fizeram um espaço de discussão para analisar e debater as mudanças que a aprovação do PL implica em sua conduta profissional. Talita conta que algumas cartas foram enviadas aos senadores, com o intuito de pressioná-los a repensar alguns pontos do projeto. O grupo no Facebook foi a estratégia encontrada para articular-se com estudantes do Brasil todo.

A passeata dos estudantes, uma manifestação pacífica que teve apoio da Polícia Militar, que orientou o trânsito, percorreu algumas das principais ruas do centro de Irati: partiu da frente do prédio da Prefeitura, desceu a rua Cel. Emílio Gomes até a XV de Julho e subiu pela Munhoz da Rocha. Os estudantes voltaram a se concentrar diante da Câmara de Vereadores, onde foi encerrada a manifestação, que durou em torno de uma hora. Os pontos foram estrategicamente escolhidos por conta da visibilidade pública do movimento. “Queremos explicar para a população que não são apenas os profissionais que perdem. Os usuários do SUS e dos serviços de saúde, de modo geral, também”, explica.

Os estudantes contaram com o apoio de professores dos departamentos de Psicologia, Educação Física e Fonoaudiologia. O professor do curso de Psicologia, Gustavo Zambenedetti, conta que assim como a Psicologia e várias outras profissões possuem suas regulamentações, eles pretendem discutir alguns pontos da regulamentação da Medicina que interfeririam na autonomia das demais atividades da área da saúde. Ele afirma que o grupo questiona três pontos principais, mas existem outros.

O professor Rafael Siqueira de Guimarães, também de Psicologia, emenda que há uma postura da Medicina em manter esses pontos, numa posição inflexível, mas que desde o início os profissionais das demais áreas requisitaram a alteração dos pontos divergentes. Gustavo aponta a questão referente à chefia de serviços médicos e diz não ficar claro o que seriam tais serviços. “Temos no SUS e em todos os serviços de saúde, a lógica da integralidade e o trabalho da equipe multiprofissional. Então não tem alguém que, a priori, se coloca como superior diante de outras profissões”, destaca. “Não existem ‘serviços médicos’, existem serviços de saúde. Essa denominação é ambígua”, questiona Rafael. A professora Daniele Almeida Duarte defende que a aprovação do PL possa ferir “a integração multiprofissional e interdisciplinar numa causa de saúde que seja de todos, para todos e envolve profissionais, cidadãos e políticos”, acredita. O professor Gustavo defende que a proposta retiraria a autonomia de vários profissionais ligados à saúde quanto aos procedimentos invasivos (como a acupuntura).

O terceiro ponto principal questionado diz respeito ao diagnóstico. “Se hoje uma pessoa procura, por um problema psicológico, por exemplo, um psicólogo, pela nova lei ele teria que passar por uma avaliação médica que iria transcrever um tratamento psicoterápico”, explica Gustavo. Ele afirma que os psicólogos também possuem tal conhecimento para fazer a indicação e que, se for o caso, também deve ter autonomia para encaminhar o paciente ao médico. Conforme Rafael, tem ocorrido uma articulação mediante contato com políticos locais que são correligionários de deputados e senadores para se articular e definir um posicionamento local frente à questão. Ele cita que o município precisa se manifestar, pois é uma cidade numa situação complicada, sem um CAPS e sem uma estratégia de saúde da família bem estabelecida. De acordo com o professor, a questão da saúde mental, por exemplo, ainda é desconhecida da população.

Entenda a polêmica

Os profissionais da saúde questionam cinco pontos do projeto 268/02: 1. Diagnósticos de doenças seriam privativos aos médicos. Psicólogos e nutricionistas defendem o direito de atestar a saúde em aspectos psicológicos e nutricionais. Fisioterapeutas e fonoaudiólogos querem se responsabilizar pelo diagnóstico funcional. O relator, senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), manteve como privativo o diagnóstico nosológico, mas retirou a exclusividade para diagnósticos funcional, psicológico e nutricional, além de avaliação comportamental, sensorial, de capacidade cognitiva e mental;

2. O texto original faculta exclusivamente aos médicos a definição de estratégias para pacientes com dificuldade respiratória (intubação) e a forma de encerrar o procedimento. Fisioterapeutas questionaram a norma, alegando que também atuam nesse atendimento, em especial em UTIs. Valadares acolheu a emenda e atribui aos médicos a coordenação nos procedimentos, permitindo que fisioterapeutas auxiliem;

3. Uma emenda aprovada na Câmara limita aos médicos a emissão de diagnósticos de anatomia patológica e de citopatologia, que identificam doenças pela análise de parte de órgão ou tecido (biópsias). Biomédicos e farmacêuticos atestam que a medida afeta sua autonomia profissional, pois análises laboratoriais requerem interpretação do material colhido e não diagnóstico médico. O relator rejeitou a mudança da Câmara, mas manteve a restrição para que só médicos emitam laudos de exames de endoscopia, de imagem e de amostras de tecidos ou órgãos;

4. Prevê como procedimentos exclusivos a médicos métodos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo acessos vasculares profundos, biópsias e endoscopia, e até mesmo a invasão de tecido subcutâneo para injeção. A medida foi protestada por acupunturistas e até tatuadores, que temem enfrentar restrições em sua atuação profissional. Apesar da injeção de medicamentos continuar sendo uma prerrogativa médica, a injeção intramuscular, intradérmica e subcutânea foi retirada da lista de atribuições exclusivas aos médicos;

5. Somente médicos poderiam assumir a chefia dos serviços médicos, mas a chefia de serviços de saúde pode ser ocupada por outras áreas. As demais categorias alegam que a medida é desrespeitosa, pois o atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar, não tendo por que apenas uma categoria poder chefiar uma unidade de saúde.

Fonte: Senado

Texto e fotos: Edilson Kernicki, da Redação

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